Texto pro moço que mandou o circo de trapo vir aqui
| por Marta Nosé Ferreira
Esse poderia ser mais um dia,
quase igual a todos os outros. Quase porque é o dia em que o ônibus-biblioteca
está no meu bairro. E com uma novidade: terá a apresentação de um tal de Circo
de Trapo. Um circo? Com palhaço, trapezista, mágico, malabarista, tenda e tudo?
De trapo? Será que é feito de pano de chão velho? Resolvo ir até lá para ver do
que se trata. Enganaram-me! Não tem circo nenhum. Tem só um pessoal engraçado,
com umas roupas esquisitas e o mais esquisito, com livros nas mãos. Pois é!
Alguém já foi em circo com livro? Eu nunca fui. E, mais uma vez, resolvi de
novo ficar para ver o que era isso.
De repente, começaram a ler poesias,
trechos de livros, histórias. Tinha de tudo: história engraçada, outras mais
tristes, algumas que faziam a gente pensar... e eu aí, escutando, escutando e
começando a gostar! Gostando, gostando e começando a sonhar! Sonhando, sonhando
e começando a me divertir! Divertindo, divertindo e até me esquecendo de todo
aquele monte de coisa que eu ainda tinha que fazer, de todas as coisas ruins
que me acontecem, de toda essa vida difícil que eu levo e que a minha mãe
insiste em dizer: “filho, se conforma, vida de pobre é assim mesmo!” Minha mãe
não mente e se ela diz, eu acredito. Mas, hoje, está acontecendo algo
diferente. Por uns momentos, eu consegui esquecer que sou pobre e que a minha
vida é assim mesmo. Vocês acreditam que o cara que estava lendo o livro
perguntou até como eu me chamo? É, assim mesmo, no meio da leitura. E antes de
responder, eu pensei: pra que ele quer saber o meu nome? O que isso tem a ver
com esses livros que ele está lendo? Mas, mesmo assim, bem baixinho eu disse o
meu nome. Não vou dizer o meu nome aqui nesse texto, não, porque qualquer um
pode experimentar a mesma coisa que eu experimentei. Nesse momento, o meu nome
não importa. Não muda o que aconteceu.
Agora eu tenho certeza que
você quer saber o que aconteceu: e não é que o cara me convidou para ir lá na
frente, com ele, ler um pedaço do livro também? Eu acho que esse cara do circo
é meio mágico, meio feiticeiro. Sabe por quê? Acho que ele foi percebendo pelo
meu jeito de rir, pelo meu olhar, que aquela história que ele estava lendo era
bem parecida com a vida que eu levo e que o menino do livro até se parecia
comigo. Acho que foi por isso que ele me chamou lá no meio daquela gente toda
para ler junto com ele. Isso mesmo, junto com ele! E a gente nem se conhecia,
nem era amigo, ele nem mora lá no meu bairro... ele nem se parece comigo! Será
que a vida dele é igual a minha?
Não sei dizer quanto tempo eu
fiquei lá, escutando, lendo, rindo, sonhando. Mas, tenho que dizer, foi dando
uma vontade tão grande de não ir embora, de guardar comigo aquela alegria toda,
levar para casa e mostrar para minha mãe... E, quando eu achei que já tinha me
divertido bastante, aconteceu uma surpresa: o cara dos livros disse que eu
podia levar alguns para casa. Eu pirei! Sério, mano? Tipo assim, de graça? Ele
me explicou como eu tinha que fazer e era bem fácil. Não bobeei. Separei logo
quatro, assim, de cara. Ele até me ajudou a escolher um.
Depois desse dia, toda vez que
o ônibus chega no meu bairro, eu corro até lá. Eu ainda acho que esse cara do
livro era meio feiticeiro, porque depois que eu conheci ele, parece que eu fui
picado por um bicho, sei lá, não consigo mais ficar sem ler, sem viajar nas
histórias, sem mostrar os desenhos para a minha mãe... E ele conseguiu fazer
uma mágica lá em casa, mesmo sem nunca ter ido até lá conhecer a minha mãe.
Até ela parou de dizer que
vida de pobre é assim mesmo. Ela trabalha e não dá para ir no ônibus, então, eu
sempre escolho um livro bem bonito e levo para ela. O meu padrasto dizia que
nós somos invisíveis, que não existíamos para a sociedade. Eu não sou
invisível, não, porque todo dia eu me vejo no espelho e quando eu vou chegando
no ônibus, o pessoal que trabalha lá me chama pelo nome. Então, o meu padrasto
já diz que parece que alguém está olhando por nós. E eu estou ficando
importante: cada vez que vou no ônibus levo alguém novo comigo. Sem querer, eu
penso que aprendi a fazer mágica com o cara do circo. Abro um livro, mostro as
figuras, leio o que está escrito, penso um monte de coisas, sinto coisas bem
diferentes e faço um desenho só meu dentro da minha cabeça. E não é que a vida
ficou mais alegre, mais bonita e mais colorida?
Então, gente, eu só tenho um
pedido a fazer: Circo de Trapo, volta outra vez? Quero aprender outras mágicas
e mostrar para os meus amigos! Minha mãe diz que não é assim: vocês não podem
vir toda hora, tem que ir em vários outros lugares, para fazer mágica para
outras pessoas. Algumas pessoas riem da gente, mas eu não ligo. Magia é assim
mesmo, tem que acontecer com a gente para a gente acreditar! Então, caras do
Circo de Trapo, quando vocês voltarem, eu estarei lá esperando e podem
acreditar que vai ser incrível, mágico mesmo! Eu só acho que esse nome de vocês
é meio estranho: vocês deviam colocar algo mais bonito. Mas, quem sabe se ficar
muito chique, as pessoas não vão achar que é para elas, né? Trapo parece coisa
de pobre! Ai, olha eu, de novo, pensando que nem a minha mãe! E foi assim,
lendo, que eu tomei a coragem de escrever esse texto para pedir para o moço que
mandou o Circo de Trapo vir aqui, mandar eles outra vez. Essa mágica que eles
fizeram comigo pode acontecer também com outras pessoas! É isso!
Marta Nosé Ferreira é
bibliotecária; atualmente trabalha como Assistente de Direção da Coordenadoria
do Sistema Municipal de Bibliotecas, da Secretaria Municipal de Cultura.
Para outros belos textos, acesse:
CIA CIRCO DE TRAPO NO ÔNIBUS BIBLIOTECA
Cia Circo de Trapo: roteiro União de Vila Nova, Zona Leste, abril de 2012
Apostar na variedade e qualidade de livros bem legais. Colocá-los abertos diante da pessoa e perguntar: posso ler pra você? É assim que se inicia a sensibilização capaz de despertar o interesse em ouvir belas histórias lidas, com muito prazer, pelos integrantes da Cia Circo de Trapo e pela equipe do Ônibus-Biblioteca às pessoas que por lá passam.
Ler para o outro, em voz alta, faz parte da Mediação de Textos Literários. E não há como resistir a esse gesto tão simples e tão belo. Eis o pequeno relato da equipe:
"Foi um encontro muito bacana,além da mediação,foi uma troca de experiências. Cada um doou aquilo que têm de melhor,por isso o resultado não podia ser outro. Espero que Cia.Circo de Trapo,nas pessoas da Vera e do Marco,tenham se sentido acolhidos e nós do Roteiro Leste III,estamos abertos ao aprendizado sempre. Parabéns á tod@s em especial a Renata e Cássio pela dedicação".
Até a próxima parada!
Ônibus Biblioteca: dá sinal pra Leitura e Informação
Nenhum comentário:
Postar um comentário